era uma vez na cracóvia

(eu)genia
6 min readMar 15, 2022

--

Faz um ano e meio que me mudei para Cracóvia.

Quem me conhece sabe que eu não tomaria essa decisão por iniciativa própria. Não gosto de mudanças, sempre fui medrosa e apegada a minha família. Tinha vontade de viajar bastante, conhecer outros países, mas morar fora definitivamente não estava nos meus planos. Mas como eu já expliquei em outro texto, o roteirista da minha vida pediu demissão sem aviso prévio e do nada um gaúcho cheio de manias surgiu na minha vida e … cá estou eu morando na Polônia. Óbvio que tem muita história nesse intervalo de três pontinhos, mas hoje me ocorreu uma situação que despertou olhar minha experiência de vida atual com os olhos de quem não mora aqui, e por isso resolvi escrever esse texto.

Basicamente tudo começou hoje cedo indo para fisioterapia quando resolvi gravar um vídeo da caminhada de dez minutos entre o ponto de ônibus e o local do tratamento. O dia estava lindo e queria mostrar para os meus pais a rua bonitinha com árvores e casinhas, então mandei o vídeo no grupo da familia e meu pai me respondeu com um áudio “Oh Pri, não é perigoso ficar andando sozinha aí não? Toma cuidado filha, te amo”. Fiz minha sessão pensando sobre o comentário e na volta resolvi gravar outro vídeo, dessa vez mostrando uma garotinha com uns oito anos de idade entrando no mesmo ônibus que eu sozinha, com um suco na mão, um casaco amarrado na cintura e sua mochila cheia de glitter nas costas. Não, não é perigoso andar sozinha aqui (nem com celular na mão). Parece loucura pensar nisso, mas ninguém te aborda fingindo que quer uma informação, mas na verdade tem uma faca escondida pra te furar se você não der todo seu dinheiro, e também ninguém passa perto de você pra roubar seu celular e sair correndo. Nós normalizamos esse tipo de atitude e a falta de segurança no Brasil, pelo menos posso dizer por experiência própria como carioca da gema. Imaginar um lugar sem esses perigos parece coisa de filme, mas é a minha realidade atual. Demorei pra me acostumar a não ter medo, acredita? Nos primeiros meses andava na rua olhando para os lados e para trás o tempo todo, cheia de paranoia, porque foi assim que eu aprendi a viver. Quer dizer, sobreviver.

Vamos para mais fatos inusitados. O transporte público aqui é limpo, não tem cobrador e você consegue acompanhar os horários pelo aplicativo. Caso você não tenha um celular, tem a mesma informação nos pontos de cada parada com horários e rotas. E pasmem, eu consigo ir para qualquer lugar da cidade de transporte público e ler meu kindle no caminho sem preocupação.

Peraí, não tem cobrador? É isso mesmo, as pessoas pegam transporte aqui na base da confiança. Cada um se responsabiliza pelo seu ticket, seja comprando pelo app ou dentro do próprio transporte nas máquinas. De tempos em tempos passa um fiscal só pra validar uma amostragem, e multar quem não está seguindo as regras. Nesse periodo todo de Cracóvia devo ter visto esse fiscal umas quatro vezes na vida.

Até então minha realidade carioquês era: rezar para o ônibus passar e parar, porque mesmo quando o ônibus aparecia (sem hora prevista depois de mofar séculos no ponto) o motorista resolvia que não ia parar e você tinha que sair correndo atrás do ônibus socando a porta e xingando a família inteira do motorista. Calhava sempre do motorista querer dar aquela aceleradinha e não parar pra pegar o sinal aberto, mas aí o sinal fechava e vinha um mutirão de pessoas correndo pra entrar porque o ser humano iluminado não consegue minimamente desempenhar o trabalho dele com respeito às pessoas que aguardam no ponto. E pegar qualquer tipo de eletrônico dentro do ônibus para se distrair segundo minha mãe é praticamente pedir para ser assaltado.

E a mudança na qualidade da minha vida não se resume a exemplos de segurança e violência, e sim ao respeito pelos meus direitos e pelas regras. Eu sempre odiei o famoso “jeitinho brasileiro” de resolver as coisas e de tratar os problemas. Um clássico que me tirava do sério: ligar para marcar médico. Você liga pra marcar, ai a secretaria diz que só tem dali duas semanas, ai você só da aquela lamentada de leve que queria uma data antes e a secretaria dá um jeitinho de fazer um encaixe. Um encaixe, sendo que o médico reserva dez minutos pra te atender, a secretaria mete dez encaixes no dia, e assim você marca o médico pra meio dia que é seu horário de almoço do trabalho, mas volta três da tarde pedindo mil desculpas pro time porque o médico atrasou duas horas e meia pra te atender.

Se você quer atravessar a rua, e o sinal tá aberto para o carro, mas não tá vindo carro nenhum, o que você faz? Fica parado até o sinal abrir para o pedestre e ai sim você atravessa. Porque? É regra, simples assim. Pode parecer banal, mas vale para o pedestre tanto quanto vale para o carro. E assim as taxas de atropelamento são baixissimas. E se você quer atravessar e não tem sinal? O carro para, sozinho, sem você pedir, porque o pedestre tem preferência. E ninguém buzina e grita se você tá andando mais devagar, ou se tem muita gente atravessando, eles esperam educadamente. Eu confesso que faz um ano e meio que não escuto o barulho da buzina, acho que eles nem sabem pra que serve. Ainda tenho recordações do barulho porque conseguia escutar do meu antigo apartamento perto de uma grande avenida o dia todo por qualquer motivo. Tirando o fato de que já fui quase atropelada trocentas vezes atravessando na faixa e com sinal fechado para o carro.

Já imaginou viver em um lugar que não existem animais abandonados? Eu morava em um prédio que todo dia quando saia de casa tinha um rapaz que resgatava animais e exibia eles em jaulas lotadas com a intenção de buscar uma familia adotiva. Me partia o coração ver aquilo todos os dias. Ajudei financeiramente diversas vezes, até que adotei minha viralatinha (também conhecida como Nina Bolada, o amor da minha vida). Mas muitos desses animais não eram adotados, viviam em situação deplorável apertados, sujos e com fome em uma mesma jaulinha. Sem falar nos que eram adotados e abandonados novamente. Onde moro hoje é crime abandonar animais, todos eles são microchipados, e se o dono abandonar ele paga uma multa absurda. Nunca vi um cachorro nem um gato na rua abandonado por aqui.

Chegando em casa, caminhando sem medo, escutando minha música no fone me dei conta de mais uma coisa que não tinha parado pra pensar até então: não tenho porteiro. Essa profissão não existe aqui, cada um abre a sua porta com a sua senha e é isso ai. Não tem necessidade de uma pessoa passar um dia inteiro olhando pra porta só pra apertar um botão pra você, inclusive na madrugada.

Eu entendo que o Brasil é do jeito que é por conta de muita desigualdade, miséria, pobreza. E sei que sou uma privilegiada. Mas eu também entendo que tem muitas questões econômicas e políticas que tornam uma realidade diferente muito distante, tão distante que parece coisa de filme. Eu amo onde nasci, e sinto falta de muitas coisas (e muitas pessoas) mas não sei se conseguiria novamente normalizando o medo e o “jeitinho” brasileiro de viver.

(Sim, eu escrevo esse texto durante uma guerra no país vizinho. Estamos aflitos com todo ocorrido, atentos as notícias para planejar os próximos passos da nossa jornada, mas estamos em segurança e rezando para que isso acabe logo.)

--

--

(eu)genia

carioca, casada com um gaúcho e mora na cracóvia. mãe de viralata com guarda compartilhada com ex. irmã mais velha, vegetariana, apaixonada por nerdice.